segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

O teatro como uma obra em aberto

Por Tiago Bartolomeu Costa

Pensemos na frase “a responsabilidade máxima do espectador”, que surgiu por diversas vezes nos espectáculos e tem feito destes um desafio permanente à definição do lugar do espectador nas propostas da companhia. Que pode levar um projecto artístico a querer estabelecer com o público uma relação directa e interdependente, falsificando aliás a ideia de que os espectáculos podem acontecer sem a intervenção directa dos espectadores?
Diria que pela necessidade de transformar o espectáculo numa experiência estética, uma vez que esta “não se inicia pela compreensão e interpretação do significado de uma obra; menos ainda pela reconstrução da intenção do seu autor. A experiência primária realiza-se na sintonia com o seu efeito estético, na compreensão fruidora e na fruição compreensiva” (Luís Costa Lima in A literatura e o Leitor – Textos da Estética da Recepção, Rio de Janeiro, 1979). Mas uma experiência estética que seja, ao mesmo tempo, uma fronteira que se deve (querer) atravessar. E isto inclui a própria companhia, obrigada que fica a uma reflexão pública.
Portanto, a identidade do Teatro Praga existe numa relação de projecção-reflexo, na qual o que se dá a ver serve como catalizador de uma série de estruturas convencionais. Estruturas essas que são tanto dramatúrgicas (o texto não é um centro, é um disseminador) como hierárquicas (numa tentativa de encontrar o fil rouge que as une) ou referenciais (onde a referência não é um fim em si mesmo, mas uma porta comunicante). Na verdade, estamos perante objectos que atentos à condição física de serem teatro (logo, ficção) buscam uma lógica que recupere o sentido primário das acções. Como já referiram por diversas vezes, devolver ao teatro o que é do teatro. “A responsabilidade máxima do espectador” é então ser-se capaz de encontrar no caos ficcional a verdade original (antes do pecado, portanto).
Estamos perante uma dimensão eminentemente política. Esta dimensão de resgate (o teatro ao teatro) contraria o que se espera de uma companhia contemporânea, assente normalmente em pressupostos de recusa e contaminação artística. Arriscaria dizer que aquilo que o Teatro Praga faz é puramente convencional, no sentido brechtiano do termo, onde a convenção deve pressupor uma abertura de limites (“na regra, descobrir o abuso”, dizia Brecht). E, no caso concreto, o limite do teatro não reside no reconhecimento imediato da proposta e menos ainda na satisfação dos envolvidos. Reside, sim, num constante questionamento sobre a validade do que se faz.
Em 1965, Roland Barthes perguntava: “Como fazer uma arte difícil e ao mesmo tempo acessível?”2. Para o Teatro Praga, essa resposta existe sobre a forma de espectáculos em que a matéria de base é o próprio teatro, no modo como é visto e feito. Jogando permanentemente com o conflito entre o verdadeiro e o falso, constroem estruturas cénicas onde o fazer sob a forma de teatro serve de pretexto para abolir a distância entre retrato e retratado. São disso exemplo a desconstrução do jogo cénico através de um prolongado improviso em Um Mês no Campo (2002), o jogo que determinava os intérpretes de Private Lives (2003), o público dividido em Título (2004), as entrevistas que serviram a dramaturgia de Sobre a Mesa, a Faca (2005) e a fragmentação das memórias teatrais em Agatha Christie (2005). A possibilidade de tudo poder ser transformado em matéria teatral dá aos espectáculos não um cunho de real (no que isso implicaria de facilidade de reconhecimento), mas antes torna falsa a própria realidade. À pergunta colocada por Barthes, o Teatro Praga responde: fazendo.
A contemporaneidade portanto, porque contemporâneo é o todo presente aqui e agora, independentemente da altura em que foi feito. Está no modo como se perpetuam as referências e na validade contemporânea das mesmas. Veja-se como em Alice no Armário (2004) dão à história de Lewis Carroll uma dimensão trágica, ou em De Repente Eu… (2003) se apropriam de um mal-de-vivre geracional, fazendo deste matéria para radicalizar a vida). Mas compreenda-se também como pode ser trabalhada essa ideia de contaminação referencial que liberta as fontes de uma finitude, interligando-as, não só essas mesmas fontes, mas também os próprios espectáculos. Casos como Quarteto e Discotheater (ambos de 2006), mostram um trabalho sobre a manipulação da referência com vista ao estabelecimento de um novo paradigma crítico, onde é o próprio espectáculo que se sujeita a uma irrisão fatal. A convocação de diferentes campos e análises dá à dramaturgia a noção de abertura que Umberto Eco definia em Seis Passeios pelo Bosque da Ficção (1994), e que é evocada no título deste texto. Assiste-se a uma prova de resistência que é activada no momento da representação, mas que se prolonga no diálogo com o espectador. Através deste mecanismo de apropriação, os intérpretes são uma espécie de agentes perversos no processo de fixação de novas fronteiras para a referência. Estas ideias de perverso, subversão, sedutor e pecado estão cada vez mais presentes – por exemplo, na relação de um para um subjacente ao ciclo Shall We Dance (2003-…), no espelhamento do establishment que bebe do seu próprio veneno em ***** (2005), ou na exposição de guilty pleasures em Eurovision (2006) – e têm levado os espectáculos a um confronto estético e teórico que poderia (se não fosse retórico) ser designado como avant-garde. Mas, e recuperando a pergunta de Roland Barthes: na avant-garde de que teatro?
Segundo Barthes3, a avant-garde nasce para o artista como um modo de resolver uma contradição histórica precisa: contestar uma burguesia com poder, mas cada vez mais retrógrada. Ou seja, impedir que o acesso à cultura e à reflexão se tornasse cada vez mais enquistado por uma normatividade. Por isso mesmo, não designa outra coisa senão uma extensão um pouco exuberante e excêntrica do domínio burguês. Razão pela qual arrisco afirmar que se o teatro praguiano é convencional, é-o porque obriga a uma morte da realidade falsa, da convenção instalada, da prevalência de uma matéria sobre outra. É-o porque pressupõe uma dissecação das razões da morte, obrigando a que sejam intimados para julgamento os culpados. Na crítica a Agatha Christie (Sinais de Cena nº4), falava em armadilhas que se avizinham definitivas. A resposta à dúvida em saber se escapariam ao seu próprio esquema surge agora em O Avarento. Porque o culpado suspeito, o autor, lhes baralha as regras do jogo, é ao julgamento final que se sujeitam, provando do seu próprio veneno, fixando as regras que querem abolir, sugerindo uma atitude relacional perante a referência. Na sacramental festa, implodem. E recomeçam, porque não há nada só por haver. Nem cena, espaço, actores, texto, espectador, encenador, nem tempo, figurinos, cenários, adereços ou mensagem. Para que exista tudo isso tem que haver responsabilidade. E é isso que se reclama. Logo, cada coisa convocada deve procurar organizar-se, justificando a sua presença. Trata-se de um trabalho (e um processo) de depuração e limpeza teatrais. De uma vontade de pensar e fazer o teatro enquanto um jogo, entre o lúdico e a roleta-russa, que deve pôr em causa o modo como nos relacionamos com os objectos teatrais.
De que serve ver um espectáculo? Porque escolhemos estar ali? Que papel queremos ter? Como (re)agimos? O que fazemos com isso?

Versão trabalhada a partir do texto publicado no programa da peça O Avarento ou A última festa, disponível em www.tnsj.pt.

1 comentário:

Anónimo, o selvagem disse...

O Pedro teve a oportunidade de ver aquilo que sempre fui (e serei!), nada de importante portanto...

Todos somos actores socais. Uns gostam de "dar-se em espectáculo" outros nem tanto, como é o meu caso, aliás verificou isso, certamente, quando dialoguei consigo (e principalmente com os outros).