segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

O teatro como uma obra em aberto

Por Tiago Bartolomeu Costa

Pensemos na frase “a responsabilidade máxima do espectador”, que surgiu por diversas vezes nos espectáculos e tem feito destes um desafio permanente à definição do lugar do espectador nas propostas da companhia. Que pode levar um projecto artístico a querer estabelecer com o público uma relação directa e interdependente, falsificando aliás a ideia de que os espectáculos podem acontecer sem a intervenção directa dos espectadores?
Diria que pela necessidade de transformar o espectáculo numa experiência estética, uma vez que esta “não se inicia pela compreensão e interpretação do significado de uma obra; menos ainda pela reconstrução da intenção do seu autor. A experiência primária realiza-se na sintonia com o seu efeito estético, na compreensão fruidora e na fruição compreensiva” (Luís Costa Lima in A literatura e o Leitor – Textos da Estética da Recepção, Rio de Janeiro, 1979). Mas uma experiência estética que seja, ao mesmo tempo, uma fronteira que se deve (querer) atravessar. E isto inclui a própria companhia, obrigada que fica a uma reflexão pública.
Portanto, a identidade do Teatro Praga existe numa relação de projecção-reflexo, na qual o que se dá a ver serve como catalizador de uma série de estruturas convencionais. Estruturas essas que são tanto dramatúrgicas (o texto não é um centro, é um disseminador) como hierárquicas (numa tentativa de encontrar o fil rouge que as une) ou referenciais (onde a referência não é um fim em si mesmo, mas uma porta comunicante). Na verdade, estamos perante objectos que atentos à condição física de serem teatro (logo, ficção) buscam uma lógica que recupere o sentido primário das acções. Como já referiram por diversas vezes, devolver ao teatro o que é do teatro. “A responsabilidade máxima do espectador” é então ser-se capaz de encontrar no caos ficcional a verdade original (antes do pecado, portanto).
Estamos perante uma dimensão eminentemente política. Esta dimensão de resgate (o teatro ao teatro) contraria o que se espera de uma companhia contemporânea, assente normalmente em pressupostos de recusa e contaminação artística. Arriscaria dizer que aquilo que o Teatro Praga faz é puramente convencional, no sentido brechtiano do termo, onde a convenção deve pressupor uma abertura de limites (“na regra, descobrir o abuso”, dizia Brecht). E, no caso concreto, o limite do teatro não reside no reconhecimento imediato da proposta e menos ainda na satisfação dos envolvidos. Reside, sim, num constante questionamento sobre a validade do que se faz.
Em 1965, Roland Barthes perguntava: “Como fazer uma arte difícil e ao mesmo tempo acessível?”2. Para o Teatro Praga, essa resposta existe sobre a forma de espectáculos em que a matéria de base é o próprio teatro, no modo como é visto e feito. Jogando permanentemente com o conflito entre o verdadeiro e o falso, constroem estruturas cénicas onde o fazer sob a forma de teatro serve de pretexto para abolir a distância entre retrato e retratado. São disso exemplo a desconstrução do jogo cénico através de um prolongado improviso em Um Mês no Campo (2002), o jogo que determinava os intérpretes de Private Lives (2003), o público dividido em Título (2004), as entrevistas que serviram a dramaturgia de Sobre a Mesa, a Faca (2005) e a fragmentação das memórias teatrais em Agatha Christie (2005). A possibilidade de tudo poder ser transformado em matéria teatral dá aos espectáculos não um cunho de real (no que isso implicaria de facilidade de reconhecimento), mas antes torna falsa a própria realidade. À pergunta colocada por Barthes, o Teatro Praga responde: fazendo.
A contemporaneidade portanto, porque contemporâneo é o todo presente aqui e agora, independentemente da altura em que foi feito. Está no modo como se perpetuam as referências e na validade contemporânea das mesmas. Veja-se como em Alice no Armário (2004) dão à história de Lewis Carroll uma dimensão trágica, ou em De Repente Eu… (2003) se apropriam de um mal-de-vivre geracional, fazendo deste matéria para radicalizar a vida). Mas compreenda-se também como pode ser trabalhada essa ideia de contaminação referencial que liberta as fontes de uma finitude, interligando-as, não só essas mesmas fontes, mas também os próprios espectáculos. Casos como Quarteto e Discotheater (ambos de 2006), mostram um trabalho sobre a manipulação da referência com vista ao estabelecimento de um novo paradigma crítico, onde é o próprio espectáculo que se sujeita a uma irrisão fatal. A convocação de diferentes campos e análises dá à dramaturgia a noção de abertura que Umberto Eco definia em Seis Passeios pelo Bosque da Ficção (1994), e que é evocada no título deste texto. Assiste-se a uma prova de resistência que é activada no momento da representação, mas que se prolonga no diálogo com o espectador. Através deste mecanismo de apropriação, os intérpretes são uma espécie de agentes perversos no processo de fixação de novas fronteiras para a referência. Estas ideias de perverso, subversão, sedutor e pecado estão cada vez mais presentes – por exemplo, na relação de um para um subjacente ao ciclo Shall We Dance (2003-…), no espelhamento do establishment que bebe do seu próprio veneno em ***** (2005), ou na exposição de guilty pleasures em Eurovision (2006) – e têm levado os espectáculos a um confronto estético e teórico que poderia (se não fosse retórico) ser designado como avant-garde. Mas, e recuperando a pergunta de Roland Barthes: na avant-garde de que teatro?
Segundo Barthes3, a avant-garde nasce para o artista como um modo de resolver uma contradição histórica precisa: contestar uma burguesia com poder, mas cada vez mais retrógrada. Ou seja, impedir que o acesso à cultura e à reflexão se tornasse cada vez mais enquistado por uma normatividade. Por isso mesmo, não designa outra coisa senão uma extensão um pouco exuberante e excêntrica do domínio burguês. Razão pela qual arrisco afirmar que se o teatro praguiano é convencional, é-o porque obriga a uma morte da realidade falsa, da convenção instalada, da prevalência de uma matéria sobre outra. É-o porque pressupõe uma dissecação das razões da morte, obrigando a que sejam intimados para julgamento os culpados. Na crítica a Agatha Christie (Sinais de Cena nº4), falava em armadilhas que se avizinham definitivas. A resposta à dúvida em saber se escapariam ao seu próprio esquema surge agora em O Avarento. Porque o culpado suspeito, o autor, lhes baralha as regras do jogo, é ao julgamento final que se sujeitam, provando do seu próprio veneno, fixando as regras que querem abolir, sugerindo uma atitude relacional perante a referência. Na sacramental festa, implodem. E recomeçam, porque não há nada só por haver. Nem cena, espaço, actores, texto, espectador, encenador, nem tempo, figurinos, cenários, adereços ou mensagem. Para que exista tudo isso tem que haver responsabilidade. E é isso que se reclama. Logo, cada coisa convocada deve procurar organizar-se, justificando a sua presença. Trata-se de um trabalho (e um processo) de depuração e limpeza teatrais. De uma vontade de pensar e fazer o teatro enquanto um jogo, entre o lúdico e a roleta-russa, que deve pôr em causa o modo como nos relacionamos com os objectos teatrais.
De que serve ver um espectáculo? Porque escolhemos estar ali? Que papel queremos ter? Como (re)agimos? O que fazemos com isso?

Versão trabalhada a partir do texto publicado no programa da peça O Avarento ou A última festa, disponível em www.tnsj.pt.

Cidadãos numa tina de tinta

de Peter Sloterdijk*

Versão reduzida de uma conferência em que o autor fala das premissas para uma sociedade democrática e a importância dos meios de escrita e representação no seio da mesma.

Gostaria de apresentar algumas considerações informais que se centram em premissas atmosféricas para uma comunidade democrática. Refiro-me, por outras palavras, às condições que possibilitam a democracia, e não no sentido kantiano, segundo o qual este organismo político devia ser encarado como um subproduto de cidadãos exercendo os seus poderes de julgamento. Diria mesmo que essas condições são uma consequência do “poder de espera” – que significa a capacidade tanto de esperar como de deixar os outros à espera. Além do mais, a democracia baseia-se na capacidade proto-arquitectónica de construir salas de espera, já para não falar da capacidade proto-política de desarmar cidadãos. Gostaria então de dar aqui a entender como estas duas capacidades estão interligadas. Olhando para este George [sic] pendurado sobre nós, despido da sua espada, torna-se claríssimo que a questão deve ser a de saber se existem outras formas possíveis de persuadir os cidadãos a depor as suas espadas e sob que condições tal procedere deve ser levado a cabo. A verdade é que alguns destes procedimentos existem mesmo e gostaria de vos ajudar a recordá-los, primeiro retrospectivamente através da história da arquitectura e depois através da lógica dos media.
Nas duas primeiras décadas do século XIX, os arquitectos de jardins ingleses começaram por criar casas que eram híbridos de vidro e ferro forjado exclusivamente dedicadas a albergar uma população de plantas extremamente sensíveis. É facto bem conhecido que isto marcou claramente a história da construção. Inicialmente, as primeiras estufas a serem denominadas como tal obedeciam apenas ao princípio do desejo, pois os habitantes prósperos das Ilhas Britânicas satisfaziam-se com esse capricho imperialista de declarar o seu país como um local para onde as plantas sensíveis podiam imigrar. E peço aqui a vossa indulgência se estou a politizar o destino das plantas, como se fosse um jogo linguístico que pretende basear-se no conceito de um colectivo expandido de Bruno Latour. A imigração das plantas para a Europa no século XIX pode ser tomada como modelo para as novas políticas de simbiose trans-humana. Os engenheiros preocuparam-se com o problema das estruturas climatéricas tendo em conta as condições de radiação solar de um local bem a norte do equador. A invenção do vidro dobrado ajudou-os decisivamente nesta questão, tal como a introdução da pré-fabricação baseada em elementos estandardizados. Tratava-se de uma tecnologia apropriada à edificação de grandes conjuntos num muito curto espaço de tempo; considere-se a aventura do Crystal Palace em 1851, que (ainda que viesse a ser o maior edifício na história da arquitectura até à data) foi construído no incrível espaço de tempo de dez meses.
Só gradualmente é que as mentes do século XIX conseguiram compreender o significado paradigmático da construção de estufas. Esses edifícios tinham em consideração o facto de os organismos e as zonas climatéricas se relacionarem aprioristicamente e de o desenraizamento aleatório de organismos, para os plantar noutro sítio qualquer, só dever ocorrer se as condições climatéricas também fossem com eles transpostas. O homem inglês imperial apercebera-se claramente que algumas das mais belas plantas tinham o hábito irritante de apenas querer florescer debaixo de céus não-britânicos e era necessária alguma criatividade se se quisesse acolher estas convidadas nas Ilhas Britânicas. Se, por exemplo, quiserem tornar uma palmeira extremamente infeliz, então forcem-na a passar um Inverno em Inglaterra sem a protecção de uma pele artificial que a refugie no seu clima nativo. A cortesia britânica excluía esta horrível hipótese e, pelo contrário, permitia a imigração em massa de palmeiras jovens, tendo sido criado para o efeito um novo tipo de edifício, o chamado Jardim de Inverno – algo que mesmo hoje pode ser considerado como um dos mais belos empreendimentos da arquitectura mundial. De cada vez que hoje em dia damos de caras com estes edifícios (sejam eles os clássicos Jardins de Inverno ou as estufas de orquídeas ou as estufas de camélias ou até as estufas para as Victoria Regia, os famosos nenúfares), também damos de caras com a materialização de um novo tipo de edifício com a virtude de terem sido tomados em consideração os factores climatéricos na respectiva construção das estruturas. O modernismo na arquitectura sempre significou também a transição do climatérico para a era da sua apresentação explícita e da sua produção. A arquitectura responde com os seus meios a uma nova forma de mobilidade que inclui hoje não só o movimento humano e animal mas também a migração vegetal. Por razões de espaço, e para adicionar mais detalhes a esta complexa tirada de fenómenos, permitam-me apenas que mencione o famoso estudo de Alfred W. Crosby, Ecological Imperialism: The Biological Expansion of Europe.
Após as descobertas iniciais na concepção de um sistema elaborado para abrigar plantas estranhas no clima local, foram necessárias mais duas ou três gerações até a biologia teórica responder conceptualmente às novas práticas de desenraizamento de plantas. Pode-se considerar que o primeiro a criar as condições sob as quais se tornou possível formular o conceito de “ambiente” [environment] foi o supramencionado exercício de conceder hospitalidade às plantas. Posso, claro, renunciar a dar uma explicação detalhada de como e porquê o conceito de “ambiente”, tal como é cunhado pelo biologista Jacob von Uexküll em 1909 (no seu livro Umwelt und Innenwelt der Tiere, segunda edição, 1921), foi, no século XX, uma dessas inovações da lógica que viria a ter um grande impacto. Dependem dele não apenas importantes extensões da biologia moderna, como também a ecologia como um todo e a teoria dos sistemas. Se após Uexküll se falasse sobre o “ambiente”, isso implicava pensar-se no habitat natural de plantas e animais exóticos, mas também nos procedimentos para a reprodução técnica desse habitat em meios estranhos. É a esse imperativo de reconstrução que temos de agradecer a formulação de um conceito geral de ambiente. Do ponto de vista histórico, o imperativo destrutivo não é menos significativo, porque a arte de guerra moderna (considerando que se inicia com a introdução do gás como arma em Ypres, em Abril de 1915) baseou-se também na compreensão de que o ambiente do inimigo, o espaço por si ocupado, poderia ser destruído.
Um dos primeiros a responder à provocação implícita no conceito de ambiente foi Martin Heidegger, que logo em meados da década de 20 compreendeu as implicações ontológicas da nova biologia. Arrisco-me a dizer que a sua formulação do “ser-no-mundo”1 constitui uma resposta filosófica ao choque que sentiu quando confrontado com o conceito biológico de ambiente. Heidegger pretendia usar a preposição “in” para proceder a uma distinção ontológica entre o êxtase humano, no sentido original grego, no mundo, e o cativeiro do animal num habitat específico. A experiência de uma deslocalização [displacement] da origem desempenha aqui um papel decisivo: quando Heidegger fala da Geworfenheit (lançamento) do ser, essa expressão recorda o risco de um desalinhamento repentino do organismo e do ambiente, o mesmo que uma palmeira de origem africana enfrentaria achando-se em Inglaterra antes da invenção da estufa.
A analogia vegetal para a Geworfenheit será então o “enraizamento”. Tanto num como noutro caso, o que temos é uma situação em que o ser humano ou a planta estão rodeados ou envoltos por um círculo de incompatibilidade. Neste caso, ajudaria se fosse a envolvente a ajustar-se de forma a acomodar a entidade projectada para o seu interior.
No caso das plantas, tal ajuste surge sob a forma de uma estufa equipada de modo a recriar as condições originais da planta; no caso dos seres humanos, a solução seria encaixar o recém-chegado na linguagem do anfitrião como numa “casa do ser” – por outras palavras, na versão ontológica da estufa, num ambiente impregnado de mistério e nada. […]

De forma a sublinhar a relevância destas considerações para a teoria política, permitam-me mostrar que o fenómeno das estufas na arquitectura do século XIX teve na verdade um antecessor nas antigas teorias urbanistas ou da polis. Assim, antes da sua formulação explícita nos inícios do século XIX, o conceito de ambiente tem uma pré-história implícita, que, como veremos, remonta à Grécia Antiga. Graças a Bruno Latour, estamos familiarizados com a arte de colocar questões epistemologicamente bizarras, do tipo “Por onde andavam os micróbios antes de Pasteur?”. Adopto este padrão e pergunto: “Por onde andava o ambiente antes de Uexküll?”.
Devo começar por procurar uma resposta nos filósofos gregos pós-socráticos, que, como acredito poder demonstrar, eram já à sua maneira teóricos de estufas e teóricos de ambiente ipso facto. Na verdade, o nascimento da antiga teoria política grega implicava uma doutrina que os obrigava a viver numa construção artificial. O que os primeiros filósofos denominaram de polis é na sua essência nada mais nada menos que uma construção artificial regida pelo nomos2 e equivale à resposta prática ao repto colocado pela improbabilidade de convencer estranhos a coexistirem entre quatro paredes. A própria palavra polis, se a escutarmos com cuidado, tem em si um certo tom reminiscente da teoria das estufas. Quem quer que a use professa a crença de que é possível a estranhos e pessoas sem qualquer relação entre si juntarem-se num lugar e naturalizarem-se num clima partilhado.
A cidade grega era uma estufa para as pessoas que concordassem ser desenraizadas do modus vivendi de viver separadas e ser transplantadas para o desarmante modus vivendi de viver juntas. Se a palavra polis sempre gozou de um tom especial, é porque aqueles que primeiro a usaram nunca se conseguiram esquecer de que a cidade, como forma de vida, sempre se destacou como maravilha social do mundo, em contraste com as condições pré-urbanas que a precederam.

Suponhamos que os fundadores da filosofia clássica responderam conceptualmente a estes problemas. E deixem-me imaginar que Aristóteles, esse grande técnico, escreveu um diálogo intitulado Dédalo – ou a Arte de Construir Cidades, um texto que, a par de todos os seus outros diálogos, se perdeu porque a tradição, na sua infrutífera selectividade, não quis que se preservasse qualquer um deles. Afinal de contas, diz-se que Aristóteles escreveu tantos textos como Platão. E suponhamos ainda que uma equipa de arqueólogos desenterrou recentemente, nos arredores de Alexandria, uma cópia de um texto perdido que estava dentro de um vaso enterrado na areia. Deixem-me também supor que tive o privilégio, a par de uma equipa de papirologistas, classicistas académicos, filósofos e seguranças, de aceder ao documento recentemente encontrado, colocando-me na afortunada posição de poder apresentar algumas considerações preliminares sobre o sensacional objecto.
A decifração inicial do texto revelou uma chave, que passo a resumir: Aristóteles põe o mítico construtor do labirinto de Creta a discutir a arte de construir cidades com Hipódamo de Mileto, o inventor do planeamento urbano por malha. Ambos atribuem a história da cidade a um acontecimento que é conhecido pelo nome de synoikismós3. A expressão designa as decisões tomadas por pequenas povoações e fortificações, originalmente espalhadas pela província e regidas por nobres, de se protegerem atrás de muros que partilham e de no futuro se sujeitarem a leis comuns. Ao contrário de Platão, Aristóteles não acha necessário recorrer a um dilúvio mítico, e também nada sabe de uma suposta assembleia primordial pós-cataclismo. De acordo com Aristóteles, não foi o impulso social dos sobreviventes da grande catástrofe natural que conduziu à edificação da polis, mas sim a perspicácia de cidadãos prospectivos, que anteviram que a constituição de uma cooperativa lhes poderia ser vantajosa quando comparada com o modus vivendi anterior.
O que é interessante nestas considerações não é tanto o seu impulso quase proto-pragmático, mas sim encontrar na expressão de Aristóteles um ponto de vista que raramente se encontraria na Antiguidade Clássica, nomeadamente o facto da coexistência do género da polis ser um modo muito artificial das pessoas viverem juntas.
Isto não contradiz a sua conhecida tese de que o Homem é um zóon politikón4, já que neste contexto o epíteto politikós não implica uma referência específica à cultura urbana, mas aponta apenas para o facto biológico de vivermos em grupos ou conjuntos. O que é, pelo contrário, surpreendente é Aristóteles considerar que a synousía5 de pessoas na cidade é o resultado do seu tratamento psico-político especial. Ele sugere que os humanos não são citadinos por natureza, mas têm de se transformar em tal; eles não podem ser entendidos como habitantes-de-cidades, porque a simples decisão tomada por vontade individual não é suficiente para estabilizar um tão improvável estado como o da coexistência de muitos na polis.
Deve então existir um terceiro termo que se encontre entre a natureza e um claro acto de vontade, algo suficientemente forte para neutralizar os poderes que as pessoas têm para se repelir umas às outras e para ultrapassar a sua aversão à vizinhança involuntária. O enigma moral da cidade é esta assentar na criação de pessoas que renegam uma certa fobia natural aos vizinhos e que defendem, por outro lado, uma xenofilia altamente artificial no mais confinado dos espaços; é uma metamorfose que pode ser comparada à alquimia moral da cristandade, com a diferença que o que aqui temos é um “ama o teu vizinho” e não os parentes mais próximos.
O engenheiro Dédalo, que dá nome ao diálogo, tinha várias sugestões em relação a este terceiro termo, sugestões que farão os teóricos da democracia torcer o nariz. Em suma, em vez de natureza ou tirania, a democracia psico-política baseia-se em rituais que devemos invariavelmente considerar como a aplicação habilidosa de procedimentos anti-misantrópicos. No diálogo, é sobretudo Dédalo que se opõe a Hipódamo, o racionalista, defendendo que o planeamento urbano é necessário a dois níveis. Durante a conversa dos dois arquitectos sobre muros e portões, praças, templos e edifícios para os magistérios, as ideias destes primeiros fazedores-de-cidades explícitos mantêm-se mais ou menos convencionais na génese; assim também quando falam da guerra, das instituições e do comportamento civil e ético. Já as referências ao planeamento psíquico da urbe são avassaladoras: instruções sobre os rituais que se devem estabelecer de forma a gerar ou fortalecer o sentido comunal dos cidadãos. Ao descrever esses processos de urbanização, o autor do diálogo quase se torna poeta. É como se desejasse competir com Platão num território onde este era tão forte. Aristóteles introduz duas alegorias de questões políticas que poderão muito provavelmente ser colocadas ao lado das famosas parábolas platónicas. A primeira parábola é a do tintureiro, claramente construída para contrastar com a parábola do tecelão de Platão, do diálogo do estadista (Politikós)6, enquanto que a segunda, a parábola da fonte, contém essencialmente uma proposta para um ritual político.
Com a parábola do tintureiro, Aristóteles move-se num território ocupado por Platão: assim como Platão no seu Politikós nomeou de “técnica Real” a capacidade de entrelaçar voluntariamente os dois temperamentos básicos e socialmente benéficos da masculinidade (o corajoso/agressivo e o autocontrolado/harmonizado), usando para isso a imagem do tecelão que produz o seu tecido usando trama7 e urdume8, também Aristóteles em Dédalo define como “técnica democrática” a imersão de todos os cidadãos da comunidade na mesma tina de tinta para dela ficarem completamente impregnados até à fibra mais profunda do seu ser. Aristóteles acredita que o synóikismos poderá desta forma penetrar no mais primário dos fios emocionais dos cidadãos.
Esta tina de tinta banha os cidadãos com um orgulho partilhado pela liberdade da sua própria polis, bem como com um respeito pelos belos actos de megalopsychia9, ou, em termos modernos, pela generosidade graças à qual determinados cidadãos se destacam dos outros. Este orgulho e respeito deve preceder todas as outras tomadas de posição de natureza política na cidade. Em vez de tornar a cidade monocromática e reduzi-la a um consenso unidimensional, estas sugestões pré-políticas possibilitam a sobreposição das camadas policromáticas, graças às quais cada cidade vibrante pode tornar-se um fórum de debates, fundações partidárias e rivalidades entre amigos. O argumento implícito nesta parábola é interessante porque aponta para premissas pré-lógicas ou pré-discursivas da arte da coexistência urbana. Recorrendo mais uma vez a termos modernos, poder-se-ia dizer que aqui o filósofo dá, pela primeira vez, voz às condições climatéricas ou psico-políticas para uma síntese social.
Talvez o mesmo se aplique à parábola da fonte e possivelmente a um nível mais amplo. Nesta, Dédalo recomenda que todos os cidadãos da polis se banhem juntos, uma vez na Primavera e outra no Outono, numa piscina especial construída para esse propósito na ágora – a “fonte da cidade”. Se podemos olhar para isto, claro está, como uma espécie de escapadela erótica de grupo ou como um Carnaval balneológico, como se Aristóteles já tivesse lido Bakhtin10, a chave para ambos os procedimentos é o facto de não existirem referências directas e discerníveis ao diálogo político, à argumentação lógica e a uma política semântica explícita. Em vez disso, as alegorias expressam procedimentos de como direccionar a dimensão pré-simbólica da coexistência dos cidadãos.
Poderíamos até ser levados a suspeitar que o ritual da fonte possui uma ligação a um texto platónico rival, porque não podemos esquecer que, à sua maneira, Platão é versado no mito de se banhar na fonte da democracia, embora, se ignorarmos os traços metafóricos, no seu caso a fonte exiba essencialmente insinuações aristocráticas e cínicas: estou, obviamente, a pensar na sua doutrina da nobre mentira, tal como ela é apresentada na Politeia, e de acordo com a qual a unanimidade pré-discursiva dos cidadãos só pode ser sustentada numa cidade fendida por diferenças de classes devido à lenda que as relaciona entre si.
De acordo com ela, a grande mãe da cidade de Atenas deu à luz três tipos de crianças – as de ouro, as de prata e as de bronze – e espera delas fraternidade entre si, tal como a que existe entre irmãos – o nascimento da fraternité, do espírito da inescapável decepção. Neste caso, o banho conjunto com estranhos é substituído pela imersão num imaginário de ambiente familiar.

O ímpeto das minhas deliberações deve agora ser claro; não há mais razão para continuar a explicá-lo recorrendo a parábolas. Deixem-me então responder à questão de quais as bases atmosféricas que primeiro possibilitam a democracia em termos espaciais e de teoria dos media. O espaço da polis é evidentemente um sítio de improbabilidades acentuadas. Para que a política se possa consolidar como a arte do improvável, têm de ser desenvolvidos procedimentos a partir dos quais os cidadãos se manifestem como agentes da coexistência no improvável. As duas alegorias “aristotélicas” visavam aludir ao facto de que a polis, como tal, constitui um espaço específico que deveríamos nomear como espaço “público”.
Gostaria de reforçar o carácter imersivo da presença neste espaço. A esfera pública não é só o resultado de pessoas que se reúnem mas, na verdade, recua até à construção do espaço que as vai albergar e no qual as pessoas que se reúnem podem pela primeira vez reunir-se. A ágora é a forma manifestamente urbana disso mesmo, mas só podemos ter a noção adequada da sua função se interpretarmos este reunir de pessoas nesse espaço como uma instalação. Instalações, como as que nos são familiares na arte contemporânea, têm como objectivo desenvolver um compromisso entre observação e participação. O seu propósito é transformar a posição de observação justaposta numa relação imersiva no ambiente que rodeia aquele que antes era espectador.
Através das instalações, os artistas modernos tentam fortalecer a posição da obra em confronto com o observador: se, em relação a objectos artísticos convencionais, como uma escultura isolada ou quadros pendurados na parede, o observador tem essencialmente uma posição de força (no sentido de se poder sentir satisfeito dando apenas uma olhadela ao passar), a instalação força-o a ter um papel muito menos dominante e compele-o a entrar na obra. Assim, a oportunidade de experienciar a arte desloca-o do pólo do observador para o do participante.
Neste processo podemos vislumbrar um discernimento que é vagamente comparável à psico-política platónica. Nenhuma comunidade aberta pode ser construída com base numa só inclinação – excepto a da fobocracia tirânica, que só funciona com a cor primária do medo (embora, como regra, a ambição seja designada para tal como cor secundária). A comunidade pressupõe um compromisso entre pelo menos dois temperamentos primários. Platão fala, com razão, do tecido feito a partir da coragem e do autocontrolo (andreía e sophrosyne). Podemos, do mesmo modo, afirmar que as premissas atmosféricas da democracia devem ser formadas a partir de um paralelogramo entre as virtudes do observador e as do participante.
O cidadão, como uma figura altamente improvável e artificial da antropologia política, poderia assim tornar-se pela primeira vez possível por uma combinação de actor e espectador numa só pessoa e, dito isto, todo o domínio público seria composto por este tipo de agente. Nesta síntese, a parte mais difícil – e aqui divergimos da ideia de instalação – envolve sem dúvida a criação da metade que vê ou observa, pois se os humanos são seres que por natureza têm instintos, paixões e interesses, então só através de técnicas culturais, mais ou menos elaboradas, eles conseguem ser persuadidos a activar a sua possível inteligência analítica ou teórica. Para se fazer justiça às condições pré-políticas da democracia, deve ser forjada uma ligação profunda entre a cultura da polis e o comportamento teórico. Não é por acaso que a democracia ateniense surge como o primeiro colectivo literato da história da cultura.
As suas características incluem o facto de as virtudes do observador não serem geradas ou reforçadas apenas pelo teatro dionisíaco ou pela arte da retórica, mas também pela invenção da filosofia, que, em termos de significância política, não era mais que o desenvolvimento de uma lógica universal da coexistência de humanos numa sala de reuniões dupla – à primeira chamava-se Polis e à segunda Physis.

A essência dos meios de escrita e representação é permitir que os utilizadores manipulem o eixo temporal, graças ao qual as sequências anacrónicas podem ser transformadas em imagens sincrónicas. Veja-se o caso do fenómeno do discurso falado. Desde os primórdios que membros da espécie Homo Sapiens se familiarizaram com a experiência de uma cadência de sons que flúem da boca do orador para, após uma presença acústica de umas fracções de segundo, desaparecerem para sempre. A inscrição da palavra dita possibilita que esta cadência seja interrompida para permitir que o nível da água suba no interior desta barragem simbólica. Há que aceitar a ideia de que a arte da escrita (ou seja, a de criar um reservatório ou piscina de linguagem) é a técnica cultural que mais contribuiu para a emergência da democracia. Ao atribuir-se à palavra dita uma presença espacial, obriga-se a que até a coisa mais passageira do mundo permaneça connosco um pouco mais de tempo do que o que seria possível num mundo unicamente oral.
O mundo registado ou petrificado pode ser repetido e deste modo pode dar-se vida a novos objectos mentais – particularmente significativos são por um lado os teoremas académicos e por outro as opiniões políticas. Parece-me agora possível afirmar que a arte de construir a polis assenta em expansões deste factor mediático. Se a polis foi a primeira resposta histórica à pergunta de como tornar as coisas públicas, então a melhor forma de transformar os objectos políticos em objectos públicos é sem dúvida a capacidade dos cidadãos reterem “as coisas” para a posteridade. A res publica advém deste acto de capturar objectos. Não possuindo técnicas adequadas para a sua apreensão, torna-se impossível estabilizar acontecimentos efémeros e dar-lhes voz no domínio político.

Deste ponto de vista, a democracia é precedida por uma dimensão pré-política na qual estão disponíveis os meios para abrandar o fluxo discursivo. É possível que a filosofia, na sua variante platónica, tenha exagerado de tal forma o efeito de valorização da democracia perante a transitoriedade, que um novo tipo de efeitos anti-democráticos se erguesse (Latour fala disto mesmo na sua inexorável desconstrução das técnicas socráticas de silenciamento de outros através de uma “indigestão de razão”11). No fundo, a filosofia e a democracia têm como fonte comum as mesmas técnicas de abrandamento da linguagem, cujo impacto faz com que objectos política e teoricamente estáveis possam ser utilizados publicamente. Por outras palavras, a polis é um reservatório de objectos simbólicos aos quais se deve proporcionar uma presença mais prolongada na comunidade partilhada (koínon).
À base mediática da polis pelos media urbanos (escrita, teatro, retórica da ágora, filosofia) acrescente-se uma base psico-política para a cidade com a função de prevenir que a elocução se esvaia a caminho de um vazio (ou em direcção à informidade das memórias). Os alicerces psico-políticos servem para poupar o orgulho dos cidadãos e para tornar compatível a impaciência aristocrática das antigas gentes da terra com a lentidão dos procedimentos democráticos. A importância deste encargo prestado pelos cidadãos ao orgulho dos grandes ganha relevância se nos lembrarmos que os fundadores da cidade e agentes do synoikimós não eram de todo pobres colonos que se fechavam por medo em fileiras; eram Senhores da Guerra áticos e senhores de grande condição que estavam em plena posse do seu poder, o que lhes permitia exigir respeito. Figuras como estas só podem optar pela coexistência se as suas exigências, no que toca à thymos12, forem devidamente tidas em conta na cidade, ou, por outras palavras, se continuarem a poder operar a um nível muito alto, no que diz respeito às suas exigências de amor-próprio e importância pública. Claro que isto só pode correr bem se se encontrarem regras, segundo as quais as prerrogativas nas competições pela honra possam ser respeitadas em acordos entre cidadãos.
Na minha opinião, a introdução de uma lista de oradores na ágora marca o momento do verdadeiro nascimento da democracia, porque não havia, até à introdução deste apoio simples e inovador, qualquer garantia de que todos aqueles que desejassem falar teriam essa oportunidade. Ainda mais importante é o facto de que, com a existência de uma lista, deixava de ser importante falar-se em primeiro, segundo, quinto, ou décimo lugar; não significava nenhum desprestígio ser-se o último a subir à tribuna.
Este simples mecanismo da lista de oradores baseia-se ele próprio numa premissa psico-semiótica bem mais complexa: a capacidade da audiência de, por assim dizer, conceder à sequência temporal dos oradores uma dimensão espacial (no sentido que acabámos de referir, na relação entre a palavra falada e a escrita), querendo com isto dizer que, também neste caso, a sequência temporal é transformada em sincronia. É fácil admitir que, provavelmente, um tal exercício apenas possa ser alcançado por um público literato. Esta transposição para a sincronia fornece as bases que permitem pesar objectos políticos opostos – as opiniões ou propostas – quando em confronto. A famosa anedota do negociante ateniense num campo espartano, mostra até que ponto esta é uma conquista razoavelmente improvável que deve começar por ser alimentada por direito próprio. Em resposta à petição ateniense magistralmente retórica, os líderes espartanos terão reivindicado o seguinte: não conseguimos responder ao vosso longo discurso porque agora que chegou ao fim já nos esquecemos do que haveis dito no princípio. Esta é uma resposta que implica inúmeras possibilidades, mas que certamente não atesta uma perspectiva democrática ou, para ser mais preciso, um treino democrático.
A democracia depende da capacidade de conceder uma dimensão espacial às coisas ditas umas após as outras; e, por conseguinte, implica um treino constante da paciência. Só compreenderá isto quem estiver seguro de que esperar pelo momento em que lhe é concedida a palavra não irá arruinar a sua honra. Garantir que tal espera não é sentida como uma humilhação deve ser considerada uma conquista cultural incomparável. Até aos dias de hoje, tumultos populistas e fascistas podem ser muitas vezes reconhecidos pelo facto de começarem por uma revolta contra a lista de oradores.

Permitam que termine com um apontamento de natureza mais abrangente. Muitos afirmam que a cultura grega clássica era sobretudo uma cultura do olhar, enquanto que o Velho Israel se destacava por ser a cultura da escuta. Tendo em consideração as minhas observações anteriores, torna-se evidente na minha cabeça que este lugar-comum só pode ser usado com grandes reservas. Parece mais prudente tipificar as culturas em função do modo como lidam com o tempo do julgamento e como, consequentemente, fazem a distinção entre sistemas pacientes e impacientes. A este respeito, a cultura ateniense da paciência pode, provavelmente, reclamar uma posição singular.
Aquilo que era para os gregos a expressão sophrosyne, um termo muitas vezes pobremente traduzido como “autocontrolo” ou “prudência”, pode, num sentido mais lato, ser atribuído ao impacto que teve a cultura da escrita; na prática da polis isto inclui a capacidade de exercitar a faculdade de julgar, mas também, e mais importante, a capacidade de escutar, a capacidade de esperar e de deixar esperar os outros, a determinação em sujeitar os outros à espera até ao ponto que se achar necessário, de forma a desarmar alguns sentimentos demasiado impetuosos entre os cidadãos.
A psicologia grega, articulada com o conceito-base thymos, assenta no facto de as pessoas reais serem sempre complexos de orgulho/rancor (e, de uma forma mais geral, de agitação) e de discussões. Se desejarmos porém estabelecer formas democráticas de vida, temos de assegurar que se o thymos é agitado, isto não produz necessariamente acções. Estas só se conseguem alcançar estabelecendo as virtudes da observação – e a noção-chave não surgiria aqui se discutíssemos este processo usando apenas palavras-chave como autocontrolo e dissimulação.
Uma intelligentsia de observadores só é acolhida na cidade se for precedida pela teatralização de sentimentos agitados, ou, sob um outro prisma, ela requer que um palco seja erguido para que pessoas que sabem que as suas opiniões são em parte definidas pelo seu thymos se possam observar umas às outras.
Quem desejasse a democracia tinha de fortalecer o observador, não por meio da meditação, característica da espiritualidade oriental, mas por meio do agon13 urbano e dos seus espectáculos específicos. Isto inclui o princípio do poder igualitário dos agentes/argumentos ou isosthenia, e foi o Nietzsche dos primeiros tempos que apontou para a sua importância na maneira como os gregos viam a vida.
Só numa atmosfera estabilizada que conduz à isosthenia podem os agentes praticar a virtude democrática kat exochen, para a qual não existe uma expressão adequada no nosso vocabulário: parafraseando-a à luz das considerações anteriores, lê-la-íamos como “inter-paciência infundida pelo orgulho” entre indivíduos poderosos. Não se trata de um rótulo muito sedutor, mas tem a seu favor o facto de evitar a insipidez de expressões como tolerância ou cooperação. Uma das premissas pré-politicas da vida na polis foi criar uma matriz para uma distribuição mais generalizada dos poderes, segundo a qual novas expressões “isosténicas” podiam ser praticadas repetidas vezes. Graças a esta concentração na isosthenia, surge uma ligação criativa entre poder e opinião, que tem como consequência a ideia de que cada agente (entendido neste caso como um conglomerado local de poder e opinião) se habitue ao facto de encontrar agentes e observadores que são seus iguais no que a isto diz respeito. Não é a comunicação ou a liberdade de expressão que tornam a democracia possível, mas a capacidade dos agentes se absterem mutuamente de representar pretensões unilaterais.
Este é o cerne da afeição anti-despótica no cidadão da polis. Despotes é o homem que deseja comportar-se na cidade como dentro das suas quatro paredes: confunde espaço público e privado e deseja actuar na ágora como um proprietário nos seus terrenos. (Dédalo diria: O déspota não tomou parte nem se banhou na fonte da polis; não se deixou impregnar totalmente até à sua fibra mais profunda na tina comunal do tintureiro.) Os gregos desprezavam a tirania apenas porque consideravam o tirano como um agente a quem faltava um opositor credível, alguém que possuísse os mesmos poderes.
A carência de isosthenia rouba à polis uma premissa atmosférica decisiva: onde não há espaço para um poder contrabalançado, passa a reinar o medo, a violência e a escravidão. A tirania é a melhor fase da falta de opositores; afinal de contas, os gregos acreditavam saber que tais fases estavam, pela sua própria natureza, condenadas à brevidade. A democracia, pelo contrário, conta desfrutar de uma longa vida, como uma melhor fase em que há procedimentos que impedem os vários intervenientes de abusar da liberdade de expressão, sem que isso implique a defesa de uma ausência de poder. As premissas atmosféricas da liberdade incluem o amor atlético do esforço, ou ponophilia, e foi a cultura da polis da Antiguidade Clássica que lhe forneceu as primeiras plataformas para a sua prática.

[1] “In-der-Welt-sein”, também traduzível por “estar-no-mundo”.
2 A Lei.
3 Viver juntos.
4 Animal político.
5 Casamento, união.
6 Político, ou da Realeza, de Platão.
7 Linhas transversais.
8 Linhas longitudinais.
9 Grandeza da alma.
10 Mikhail Mikhailovich Bakhtin, linguista russo. O seu trabalho é considerado influente na área da teoria literária, crítica literária, sócio-linguística, análise do discurso e semiótica. Bakhtin é, sobretudo, um filósofo da linguagem e a sua linguística é considerada uma “trans-linguística”, porque ultrapassa a visão de língua como sistema. Isto porque, para Bakhtin, não se pode entender a língua isoladamente, mas qualquer análise linguística deve incluir factores extra-linguísticos como o contexto da fala, a relação do emissor com o receptor, o momento histórico, etc.
11 Bruno Latour, “A Politics Freed From Science. The Body Cosmopolitic”. In Pandora’s Hope. Essays in the Reality of Science Studies. Cambridge [Massachusetts]: Harvard University Press, 1999. p. 236-265.
12 Estados afectivos.
13 Convenção formal de acordo com a qual o combate verbal das personagens deve ser organizado de modo a fornecer a base para a acção.

* “Citizens in a Vat of Dye”. In (In)Tolerance: Freedom of Expression in Art and Culture. Rotterdam: Netherlands Architecture Institute Publishers, [2006].
Tradução e notas: Teatro Praga.